22 julho, 2000

Cem anos depois Chiquinha Gonzaga nos faz chorar

Mais de cem anos se passaram desde a luta de Chiquinha Gonzaga em defesa da arte brasileira, vencendo os preconceitos da corte e da classe dominante em relação à mulher. O sofrimento, a dor, a firmeza de caráter e o espírito de luta dessa grande mulher foram eternizados através da peça. "Ô Abre Alas", Maria Adelaide Amaral, interpretada por Rosamaria Murtinho e por um elenco de primeira grandeza. A Chiquinha Gonzaga do final do século XIX nos faz chorar no final do século XX porque traz à lembrança velhos preconceitos e até mesmo a tirania exercida pela elite da ápoca – de valorizar mais a cultura inglesa em detrimento da brasileira - contra as idéias inovadoras dessa mulher, que questionou até mesmo Rui Barbosa. Mas não basta chorar ao fazer essa viagem de 100 anos ao passado, no Teatro São Pedro. Tampouco basta aplaudir de pé e gritar "bravo!" para os atores. Importa fazer uma profunda reflexão sobre a história dessa mulher que nos fez pensar sobre um tempo, não muito distante, em que nossas avós e bisavós eram tratados como propriedade de pais ou maridos.

Muitas chiquinhas gonzagas, ao longo de nossa história, cada uma ao seu modo, conquistaram direitos às mulheres, hoje insculpidos na Constituição de nosso país. Há necessidade de continuar essa luta, para fazer valer os direitos das mulheres, das crianças, dos adolescentes, dos idosos, dos estudantes que, mesmo tendo garantias constitucionais, continuam a ser desrespeitados pela mesma classe dominante que aí está - ostentando os mesmos privilégios e o mesmo ranço - apoiada, como naquela época, pelos dirigentes. É verdade que, hoje, algumas mulheres conquistaram o direito de sair de um casamento que não deu certo e levar seus filhos consigo, porque podem sustentá-los sem se prostituirem – as mulheres que não tiveram acesso à educação ainda não alcançaram esse direito.

Igualmente é fato que, em nossos dias, um grande número de mulheres freqüenta a universidade, mas, também é verdade que metade delas vê-se obrigada a abandonar os bancos escolares por falta de recursos ou mesmo recorrer à prostituição para pagar o curso superior. Também corresponde à verdade que as mulheres são vítimas de assédio sexual nos ônibus, no trabalho e na escola. Os filhos de milhares de mulheres operárias vivem nas ruas deste imenso país, cheirando cola, dormindo nas praças – são os meninos de que todos falam, mas poucos ajudam. Quando deputadas, professoras, advogadas, médicas, assistentes sociais, psicólogas e tantas outras profissionais apontam o caos instalado na saúde, na educação, nos direitos sociais, nos tribunais, nas assembléias legislativas, nas câmaras de vereadores, no Senado, na Câmara dos Deputados, nos hospitais, nas negociações dos professores com os governantes, não pensem que recebem um tratamento melhor do que recebeu Chiquinha Gonzaga. Há apenas aparência de que elas são ouvidas e respeitadas, porém, no fundo, o tratamento é quase o mesmo.

Portanto, neste novo milênio precisamos continuar, em todas as áreas - artes, ciências, educação, saúde, direito, política -, a luta de Chiquinha Gonzaga. Conclamando aqueles que hoje ocupam o lugar reservado à coroa portuguesa naquela época, sejam eles governantes, juízes, empresários, políticos, a ouvir a voz de todas as chiquinhas gonzagas deste século, a fim de promoverem a justiça social e permitirem que as gerações futuras, em 2099, ao assistirem a peça teatral "Chiquinhas Gonzagas do ano 2000 mudaram a história do país", também possam emocionar-se com o exemplo das mulheres que continuaram a luta da primeira Chiquinha Gonzaga. Que, embora não tenha sido analisada no divã de Freud, não abriu mão de seu desejo. Parece-nos que, ao escutar as notas musicais de suas composições, na verdade escutava o inconsciente, que, sem dúvida alguma, a levava ao encontro de seu desejo.

Publicado originalmente no ano 2000.

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