11 novembro, 2005

O cidadão tem direito de eximir-se da prestação do Serviço Militar

Wanda Marisa Gomes Siqueira*

A convocação de médicos e outros profissionais da área da saúde para prestar serviço militar no Exército, Marinha e Aeronáutica, depois de incluídos no excesso de contingente quando ainda eram estudantes, merece da sociedade brasileira uma adequada reflexão: afinal, a prestação do serviço militar deve constituir-se numa obrigação legal ad eternum ou numa opção de acordo com a convicção filosófica, política ou religiosa de cada um?
Não bastasse o fato de interromper abruptamente as carreiras de milhares de dedicados profissionais pelo país afora, a anacrônica iniciativa das Forças Armadas brasileiras vem se revestindo de uma exigência incompreensível nestes tempos de esforço pela paz mundial quando, sob a máscara da lei, ameaça com "captura", especialmente, médicos, caso se recusem a cumprir o dever patriótico de "sentar praça".
A convocação desses profissionais , a maioria colocados no excesso de contingentes há mais de dez anos tem desaguado na esfera judicial, cenário em que é invocada a figura da "objeção de consciência" espécie de barreira íntima que emerge da decisão do indivíduo de ser moralmente coerente consigo mesmo. Segundo o pesquisador Cláudio Maraschin, da UFSC, "a objeção de consciência comporta uma ação política democrática, de fundamental importância estratégica na luta pela transformação de um sistema, no sentido de negar apoio e colaboração a um modelo reprodutor de injustiça".
O termo "objetor de consciência" foi empregado pela primeira vez no sul da África pelo general Smuts para se referir ao movimento organizado pelo líder indiano Mahatma Gandhi, inspirador da doutrina da não-violência, e, desde aquela época, adquiriu uma conotação prevalentemente pacifista e antimilitarista. Convém ressaltar que a objeção de consciência não se reduz ao campo do serviço militar, compreende uma atitude e um comportamento também ligados ao exercício de profissões como médico, advogado e jornalista.
"Todo Estado moderno e democrático, que se encontra seguro de si mesmo", sustenta Cláudio Maraschin, "reconhece a objeção uma parte componente normal de sua cultura política (...). Os conflitos entre a consciência do indivíduo frente à sociedade e o Estado não devem ser resolvidos dogmaticamente, pois o direito não pode violentar as convicções íntimas do homem quando estas apresentam valores superiores aos da coletividade. Ao resistir à disciplina militar, não significa que o indivíduo coloque em risco sua condição humana (masculina ou feminina), mas trata-se de não renunciar à sua identidade e de ganhar seu próprio espaço. Em diversos países o caminho trilhado foi o da extinção completa da obrigatoriedade do serviço militar e da prestação substituitória (serviço alternativo), visando uma gradativa profissionalização das Forças Armadas".
Nossas constituições fixaram normas definidoras das obrigações dos cidadãos quanto à defesa nacional. A Carta de 1891 estabeleceu que todo o brasileiro era obrigado ao serviço militar nos momentos em que a segurança interna estivesse ameaçada. O serviço militar regular surgiu mais tarde, com a instituição do recrutamento anual. A "Constituição Cidadã", de 1988, manteve o princípio da obrigatoriedade, no entanto, reconhece a "escusa por imperativo de consciência", que desobriga o alistado ao serviço militar obrigatório desde que cumpra uma prestação alternativa. O parágrafo 1º do artigo 143 determina que as Forças Armadas, na forma da lei, atribuam serviço alternativo aos que alegarem algum impedimento de consciência para se eximirem de qualquer atividade de cunho militar, norma que só não é desconsiderada graças à intervenção do Poder Judiciário.

A legislação que autoriza a convocação de médicos e outros profissionais da área da saúde para a prestação do serviço militar vem sendo mal interpretada e os atos de convocação, conseqüentemente, estão eivados de ilegalidade, conforme recente decisão do Superior Tribunal de Justiça.
A solução seria a realização de concurso público para suprir a carência de médicos especialistas das Forças Armadas , em respeito ao princípio constitucional que estabelece que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público.
Enquanto essa norma constitucional não for observada resta ao cidadãos buscarem a tutela jurisdicional para proteger o direito ameaçado de lesão irreparável sempre que ocorrer convocação extemporânea ou caracterizar-se impedimento de consciência, para eximirem-se de atividades de caráter essencialmente militar, conforme assegura a Lei Maior.

*Advogada
Novembro de 2005

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