21 fevereiro, 2011

Direito e Psicanálise

O artigo do Psicanalista José Luiz Caon explica porque os processos de separação são tão difíceis e dolorosos. O autor, com rara sensibilidade, consegue explicar a ’loucura’  vivida  durante esses processos através da Psicanálise, Literatura e Direito.


Wanda Siqueira
Advogada


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Escrito por José Luiz Caon, psicanalista 
LOCALIZADO EM Artigos - Ser Pai 


Tenho um amigo, o Selmo que me manda e-mails sobre qualquer coisa. O último que acabo de receber diz:


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É comum que um progenitor tenha dois ou mais filhos, ou com o mesmo consorte ou com consortes diferentes. Todavia, a sorte de ter compartido um casamento, um divórcio e também ter passado por viuvez, isso não é tão comum. É feliz aquele que somente comparte um casamento e morre? Será mais versado aquele que alem de compartir casamento também vive uma viuvez? E que de experiência teria aquele que por tudo passa, por casamento com viuvez e casamento com divórcio? À primeira vista, esse vai saber que a separação por viuvez é, por si só, sincera e sem regateios. Já se poderá dizer o mesmo na separação por divórcio? As separações por divórcio costumam ser eivadas de hipocrisia, especialmente quando há prevaricação.
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Selmo, autor desse texto que apresento e que me inspira, foi casado e perdeu o casamento contra a Morte que lhe levou a parceira. Casou-se de novo e perdeu o casamento por divórcio, desta vez conta a Vida, evidentemente não a dele. Escreveu-me, mais isso, em seu e-mail:




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Como sabes, casei-se duas vezes. Separei-me duas vezes. Não tenho informação se Machado de Assis tratou da sorte de um homem como eu. Mas, vou me informar. E gostaria que tu me ajudasses nisso. Estou curioso em saber se Machado de Assis confirma que os interesses pela herança, na separação por falecimento, costumam ser os mesmos quando a separação é separação por divórcio. É que constato que a procrastinação é, via de regra, o procedimento mais freqüente na separação por divórcio.
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Selmo nunca se submeteu a uma psicanálise, mas, é capaz de entender muita coisa do método psicanalítico. Ele sabe que a psicanálise é uma prática bem especial, com método próprio que trata da fala e da escuta dessa fala.


Lembra-me que, numa certa ocasião, Selmo e eu, falávamos de palavras originadas do latim. Por exemplo, a palavra “tio”, em latim tem dois termos. Se for tio paterno é “patruus”; se materno, “avunculus”. A ressonância de “patruus” e de “avunculus” falam por si sós!


A palavra “cras” significa “amanhã”. Ela aparece no famoso provérbio ilustrado por uma caveira que aparentemente diz: “Hodie mihi, cras tibi”. (Hoje toca-me a mim, amanhã toca a ti!). O termo procrastinação pode tem uma acepção finita ou infinita. A procrastinação finita é o adiamento para um amanhã determinado. A procrastinação a perder de vista é um adiamento sem amanhã definido.


Uma procrastinação sem limites, à moda de Hamlet, perde seu poder de fogo. Os advogados usam o nome “preclusão” para mostrar que um ato procrastinado pode perder seu poder de efetivação. A procrastinação, assim, fica esvaziada, ao ultrapassar o prazo fatal ou “deadline”.


Os psicanalistas, com Lacan, apropriam-se desse conceito, utilizando-o no termo “forclusão”, para indicar um fato psíquico que significa algo que é constituído sem eficácia. Seria o estado psicótico da mente.


O Houaiss fornece a etimologia da palavra forclusão (do francês forclusion, 1446) que significa “a privação de uma faculdade ou de um direito por não executá-los no tempo devido”. Provém do verbo francês “forclore” (1120) que quer dizer “excluir pela força, ser privado de”.


Na psicanálise, é o “mecanismo psíquico de rejeição das representações insuportáveis, antes mesmo de se integrarem ao inconsciente do indivíduo, o que seria, segundo Jacques Lacan (1901-1981), a origem da psicose.” 


Um estado psíquico de ineficacidade simbólica transitória é o efeito de uma micro-forclusão, do qual todos padecemos em nossas vidas cotidianas. E me parece que é assim, pois na prática, ninguém é louco 24 horas por dia e ninguém fica bem as 24 horas de um dia. Estamos sob o efeito de micro-forclusões nesses momentos em que nosso pensamento embolotado clama para se tornar palavra falada ou escrita. 


Na última parte do e-mail de Selmo, leio o seguinte: 




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Tenho muitos amigos e amigas separados por divórcio. Troam para o mundo, sua liberdade e autodeterminação. Todavia, hipocritamente, na intimidade, choram a perda ou da situação do casamento ou do objeto de amor encontrado no casamento. Dostoievsky, em Os Irmãos Karamazov, conta que o pai dos quatro irmãos, ao saber da morte da esposa, viveu, ao mesmo tempo, um profundo pesar e um triunfo sem igual. Por um lado, entristeceu-se por que perdeu um ser amado; por outro, exultou porque enfim estava livre de um prisão, na qual estava encerrado com o ser amado. Se há tragédias no desejo dos seres humanos, essa situação enunciada por Dostoievsky, é certamente modelar. Eu guardo aquilo que uma vez tu me recordaste: “Matar os monstros nem sempre é difícil. Remover-lhes o cadáver é que é penoso.” Grande abraço, meu caro!
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Acostumado a escutar ao longo dos dias a verdade verdadeira das almas em conflito com elas próprias, impondo-me a obrigação de não tomar partido, confesso que freqüentemente me vejo lendo literatura e e-mails, como esse do Selmo, como quem não somente lê a comunicação, mas também como quem escuta aquilo que poderia ainda ser dito, mas no dito, fica pendente, como uma carta em posta restante.


E retomando o que vinha dizendo sobre a procrastinação a perder de vista, penso que ela é uma esperança, mas uma esperança gangrenada. Ela tem o efeito de vício redibitório insanável. É como um ovo de galinha não fecundado. Submetido ao choco da choca, ficará inevitavelmente choco.


Na viuvez, a procrastinação da retomada da vida pode se transformar em gozo melancólico que, sob a forma de luto, é, em certas culturas, cultivado ou tolerado por um ano. De fato, uma ferida aberta precisa de tempo e cuidados para cicatrizar. Todavia, ela pode também arruinar-se. É isso a melancolia: esse labor psíquico da tristeza que se deteriora, que não vinga e que não medra. O corte na alma ocasionado pela perda irreversível de um ente querido, de um estado de vida, como o casamento, ou uma profissão, etc., pode se transformar de ferida psíquica viva e vívida, em ferida psíquica deteriorada e pustulenta.


A folclore sobre a viuvez da mulher é recheado de muita picardia. Provérbios como “a viúva é como acha de lenha, chia, mas arde” é um belo exemplo. O fantasmagórico psíquico coletivo mostra as viúvas de negro retomando o pódio da virgindade ou fazendo parecer que assim são.


O Selmo, que é um gozador de primeira, me contou que uma viúva processou um vendedor de alimentos, um senhor de uns cinqüenta anos. Ela anunciava: “Ovo e uva fresca!” Mas, a viúva ouvia: “Ó viúva fresca!”


Selmo também me contou o sonho de uma viúva. Ela sonhou que estava voltando do cemitério onde fora rezar pelo defunto marido. Ao meio do caminho de volta para casa, ouve passos seguindo-a. Ela olha para trás e vê um homem nu. Ela estuga os passos. O homem nu procede igualmente. Ela põe-se a correr. O homem nu põe-se a correr. Ela pára atrás do tronco de uma árvore. Ele pára no outro lado do tronco dessa mesma árvore. Ela o insulta com os nomes mais feios e ofensivos do vocabulário das viúvas e por fim lhe pergunta:
- O que é que você quer?
O homem nu responde-lhe:
- Eu? Eu não quero nada. O sonho não é teu? 


O Seminário VI de Lacan chama-se “O desejo e sua interpretação”. Freud nos ensinou que os atos falhos, as idéias súbitas e extemporâneas, os chistes, enfim, tudo aquilo que aparece como inantecipável, tudo isso é da ordem do desejo. Lacan, em quase 600 páginas, atualmente transcritas, serve-se inclusive, como Freud, da excelente obra de Shakespeare, Hamlet, para mostrar de que somos feitos enquanto seres de desejo.


Uma das funções da parentalidade, especialmente daquele que é pai, é articular o desejo do filho com a Lei. Todavia, isso não é somente ofício de progenitores. Todo o adulto da humanidade, por exemplo, o pedagogo, o juiz, os pensadores em geral, especialmente, o psicanalista, queiramos ou não, estamos sempre seduzidos pele querer saber qual é o desejo de que o outro se alimenta. Nesta perspectiva, advogados que se interrogam sobre o “animus” do cliente, estão no bom caminho.


Todavia, a prática do Direito se impõe limites muito precisos e inabaláveis, a tal ponto de crer que há um foro interno e outro externo precisamente separáveis! A ficção jurídica do campo de foro interno e externo não é análoga à ficção metapsicológica do campo psíquico delimitado em Consciente/Pré-Consciente e Inconsciente. Essas duas ficções fundam-se em duas diferentes concepções de Lei.


Essas duas concepções nem sempre andam no mesmo sentido como as águas na deriva de um rio. Por exemplo, o Direito não obriga a um cidadão a gozar (usufruir) de um bem do qual esse cidadão tem a propriedade. Mas, o Direito garante, a esse cidadão, o gozo desse bem, impedindo que outro cidadão perturbe o gozo desse bem. A tal ponto isso é assim que se costuma dizer que no Direito o cidadão encontra deveres explícitos e não direitos... É por isso que freqüentemente encontramos cidadãos incapazes de gozar ou desfrutar seu casamento, sua viuvez ou seu desquite, mesmo quando sancionado pelo Direito?


Ou quando saem de uma situação para outra, procrastinam o abandono da situação antiga e carregam os hábitos da situação anterior para a nova. Que divertido seria ver um bebê, feito caracol, arrastar-se carregando a antiga placenta! 
É por detectar essas e outras situações que a psicanálise é divertida e também faz rir, mas sem debochar! Como dizia Pitigrili: “Basta ser humano que já merece atenuantes!” 


José Luiz Caon, psicanalista 

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