21 junho, 2011

Borges vendo chover em Palomas

Estimado Juremir,

Não consegui silenciar depois de ler “Borges vendo chover em Palomas”.

Na minha adolescência quis o destino que eu fosse passar uns dias na casa  da D. Zilá numa estância em Palomas,   atendendo a um pedido que ela fez a minha mãe para dar aula particular para  o filho  dessa senhora que se preparava para fazer a prova de admissão ao ginásio e, ao mesmo tempo para tirar férias naquele lindo lugar.

Os primeiros  dias foram de encantamento, passeava de charrete, andava a cavalo e até fui ao dentista no consultório próximo ou junto a estação de ferro . Nos finais de tarde ouvia o canto dos passarinho s deslumbrada com a natureza e achava maldade  não gostarem das caturritas.

Os dias foram passando e alguns vizinhos que ficaram sabendo da professora particular pediram para eu dar aulas a outras crianças ( eu adorei porque gostava de ensinar e já lecionava nas escolas do município desde os 15anos).

Mas havia um clima estranho no ar, sempre me perguntavam  se estava tudo bem, se eu não estava estranhando e eu dizia apenas que ouvia muito barulho de pratos e talheres de noite como se estivessem muitas pessoas no comedor ( sala de jantar) . A D. Zilá tentava me tranqüilizar e dizia : não te preocupa ,porque muitas  vezes acordamos e tomamos chá ou café de madrugada .

Mas eu sempre sentia um pouco de medo, uma presença estranha e  invizível , como se alguém estivesse na janela me olhando .Contei isso para a D. Zilá com medo que ela não entendesse , mas ela entendeu e  preocupada , querendo me tranquilizar disse se quiseres a minha filha ( criança de 5 ou  6 anos) a partir de hoje passa a  dormir  no quarto contigo . Aceitei mas mesmo assim o vulto  desta vez mais real do que antes , apareceu na janela ,vestido de branco , parecia um caboclo, com uma barba bem rala e olhar enigmático. Ele  transpôs a janela e ficou ao lado da nossa cama (minha e da menina)e eu corri até o quarto da D. Zilá e o vulto atrás de mim , a minha  voz trancou eu não conseguia falar . Bati com força na porta do quarto do casal e a D.Zilá acendeu as  lamparinas  e me contou tudo sobre o Fantasma de  Palomas. Ela disse que ele vagava por ali, de casa em casa, mas que todos já haviam se acostumado com a presença dele e que ele não fazia mal  nenhum , apenas olhava querendo se comunicar e não conseguia, parecia mudo.

Ninguém mais dormiu naquela noite, os comentários se espalharam na vizinhança , a professora iria embora porque o fantasma apareceu para ela. Esperei acordada até o dia amanhecer e chorando muito pedi  que me levassem de volta para a cidade. Os vizinhos queriam que  eu ficasse .  O fantasma não fazia mal para ninguém e  as crianças estavam gostando tanto das das aulas! Precisei  insistir  é até exigir  o direito de voltar para a casa dos meus pais  ( acho que foi quase um habeas corpus ). Conseguiram , com muito esforço uma carona para Livramento  e já a tardinha saí de lá , sentindo angústia e tristeza por deixar aquele lugar tão lindo por medo de um fantasma e também com medo de que não acreditassem em mim.

Mas Palomas continua viva em mim ,o  mesmo vilarejo, a mesma velha estação, o rosto de velho dentista, quero tanto voltar para revisitar e rememorar essas lembranças  de  encantamento e magia , com personagens inesquecíveis , que reaparecem , sem pedir licença em sonhos e invadem nossos pensamentos para nos remeter ao Cerro  e ao vilarejo de Palomas.

Essas histórias são da ordem do indizível, somente quem viveu sabe o que significam.

Chego a pensar que o que viste não foi um imenso  pé de caraguatá florido , na minha imaginação desconfio que era  o fantasma da janela, que estava vestido de branco naquela noite quando  apareceu para mim naquela estância mal assombrada.

Passaram tantos anos e eu como tu ainda trazemos essas imagens na lembrança porque nem mesmo o divã de Freud deu conta delas .

Será que o fascínio que sentimos  sobre o Cerro de Palomas pode estar  relacionado  aos  nossos fantasmas que lá habitam e que tanto nos assombram quanto encantam?

Abs. Wanda Gomes Siqueira

Resposta do Jornalista Juremir Machado
Que bonito, Wanda. Abraços, Juremir

Segue o texto:


Borges vendo chover em Palomas

O escritor argentino Jorge Luis Borges morreu em 14 de junho de 1986.
 Acredito que ele ainda vive em Palomas.
 *
 O velho Borges vendo chover em Palomas
 Afinal, qual o sentido dessa história? O que dizem os manuscritos, em árabe ou aramaico, esquecidos em Palomas com a morte de Rafael Vidal? Sei que os estudantes querem saber. A minha resposta vai decepcionar todo mundo: eu mesmo não sei. Rafael Vidal é um personagem. Ele existe em mim a partir de fragmentos da realidade. É o fruto de uma época em que o Brasil pensou em invadir o Uruguai para libertar o cônsul Aloísio Dias Gomide, seqüestrado pelos tupamaros. É tudo que eu realmente sei sobre Vidal. Ele é muito real em mim. Mas eu não o domino. Volta e meia, reaparece nos meus sonhos ou no meu imaginário e ganha vida e força contra a minha vontade. Vida não morre jamais.
 Palomas sempre fui cheia de personagens estranhos e indecifráveis, como se tivessem saído de algum livro ou antecipassem histórias que se tornariam conhecidas, misturando-as antes mesmo de existirem. Lembro-me de que na estrada levando do centro do vilarejo até o pequeno cemitério incrustado numa coxilha, não longe do belo “Cerro de Palomas” – essa meseta altiva que se ergue soberana sobre a verdura da campanha –, havia um casebre quase tocando o chão. Na sua única janela com vidros, um velho contemplava a estrada com olhos perdidos. Eu passava por ali todos os dias ao final da tarde. Ia recolher os animais soltos para comer. Os bichos acabavam sempre costeando a cerca do campo santo, onde havia muito pasto. Eu sentia muito medo. Certa vez, avistei uma figura vestida de banco que se balançava freneticamente junto aos túmulos. Dei de rédeas e só parei de galopar na porta da nossa casa.
 Tive, no entanto, de voltar para trazer as vacas. Meu pai não quis acreditar na minha história. A figura de branco era um imenso caraguatá florido. Nos meses de inverno, quando a chuva parecia açoitar o povoado para sempre, eu passava diante do casebre com o seu único olho de vidro e lá estava o velho Borges vendo chover em Palomas. Era um homem taciturno. Apenas uma vez eu o encontrei no pátio da sua casinha. Estava sentado numa cadeira de balanço e tinha um livro sobre os joelhos. Não se mexia. Parecia estar em outro lugar. Eu já sabia ler e me aproximei instintivamente para testar os meus conhecimentos. Só consegui ler algumas letras: ...Mil e uma noi... O velho tossiu. Eu saí correndo. Nunca voltei lá.
 Palomas era assim. Tinha o “seu” Potes, um homem de algumas posses, mas que vivia quase como eremita no meio dos seus livros e revistas. Ao que consta, por causa de uma briga com a mulher. Ela teria esboçado um gesto de aborrecimento quando ele foi lhe fazer uma carinho ao chegar das lides campeiras. Disso teria resultado um juramento de nunca mais dirigir a palavra a ela e um isolamento eterno. Um neto dele é meu aluno na PUC. “Seu” Potes foi a primeira pessoa a me falar de literatura. Não sei se ele era amigo do velho Borges. Sei apenas que fiquei estarrecido quando fui com meu pai buscar os animais junto ao cemitério. Borges estava na janela fitando o aguaceiro. Meu pai comentou subitamente: “O velho Borges é cego”.


Postado por Juremir Machado da Silva - 18/06/2011 13:18
http://www.correiodopovo.com.br/opiniao/?blog=juremir%20machado%20da%20silva

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