03 janeiro, 2017

Cancelamento de matrícula na UFPel: abuso dos agentes públicos da universidade viola o sagrado direito de defesa

Wanda Gomes Siqueira
Advogada
                                                                  
Os agentes públicos das universidades brasileiras e, neste caso, da UFPel, costumeiramente praticam atos de abuso de poder contra os estudantes a partir de denúncias de movimentos que não representam o sentimento da maioria do povo brasileiro porque incentivam o ódio entre brancos, pardos e índios, esquecendo que a maior riqueza cultural é justamente a miscigenação espontânea presente de norte a sul do país independente de cor ou credo.

A universidade anuncia que está criando um grupo de trabalho para a averiguação da veracidade da autodeclaração de estudantes que ingressaram entre os primeiros semestres de 2013 e 2016 sob o argumento de que, antes, a autodeclaração não era contestada e que, basicamente, os processos eram instaurados a partir de denúncias.

Cabe indagar: esse grupo de trabalho a que se refere a universidade é um Tribunal Racial? Se for um Tribunal Racial com esse objetivo, a universidade está cometendo grave e perigoso precedente que afronta princípios constitucionais.

É notório que em nosso país os cidadãos que se autodeclaram pardos estão sofrendo discriminações da ordem do indizível, ao ponto de terem suas imagens divulgadas nas redes sociais com o estigma de fraudadores de processos seletivos para ingresso nas universidades e em cargos públicos.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) configurou um dos cinco grupos de "cor ou raça" que compõem a população brasileira, junto com brancos, pretos, amarelos e indígenas. 

A Lei nº 12.990/2014 e a Resolução nº 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça estabelecem que poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclarem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE.

Sem dúvida alguma, a tese que venho sustentando desde 2008, inclusive quando participei como amicus curiae no Supremo Tribunal Federal sobre o desvirtuamento do espírito do Programa de Ações Afirmativas - reserva de cotas sociais no âmbito das universidades públicas confirma-se com o desligamento dos alunos da UFPel. (https://www.youtube.com/watch?v=lo8tnY-y-30) e (https://www.youtube.com/watch?v=xrtR6xwpaMM)

Defendo a tese que o ingresso através de reserva de vagas nas universidades públicas deve ser feito para a inclusão dos estudantes pobres, sejam eles pretos, pardos ou índios. Esse é o verdadeiro sentido da referida lei. 

Causa perplexidade o fato de serem investigados, perseguidos e discriminados estudantes que se autodeclaram pardos e não serem investigados estudantes que frequentam escolas públicas de excelência, a exemplo dos Colégios Militares e dos Colégios de Aplicação das universidades públicas que, via de regra, são de famílias de origem rica e frequentam os melhores cursos pré-vestibulares. Supõe-se que a universidade pública não quer estudantes pobres! O Tribunal Racial a que me refiro deveria ser substituído por uma comissão que investigue se o estudante beneficiado pelas cotas sociais é pobre e necessita dessa reserva de vaga nas universidades.

É fácil concluir que a universidade não está sabendo interpretar o espírito da Lei das Cotas Sociais ao permitir que ricos ocupem as vagas dos pobres e, consequentemente, cancelar a matrícula de estudantes pardos, supostamente pobres, com base em denúncias e fotografias que estampam os rostos de pessoas que se reconhecem como pardos, ou seja, brasileiros com variadas ascendências étnicas, com misturas de cores de pele, seja miscigenação mulata (descendentes de brancos e negros), cabocla (descendentes de brancos e ameríndios), cafuza (descendentes de negros e indígenas) ou mestiça.

O desligamento de alunos que se autodeclararam pardos é um ato atentatório à dignidade da pessoa humana e fere a legislação vigente porque se nos editais dos concursos vestibulares há previsão de reserva de vagas para pretos, pardos e índios, há que aceitar como verdadeira a autodeclaração dos estudantes pardos considerando que 84 milhões de brasileiros se autodeclaram pardos, conforme identificou o IBGE na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios em 2006. A universidade quer criminalizar os estudantes e judicializar essa questão com a deliberada intenção de destinar as vagas das matrículas canceladas para estudantes que não necessitam dessa reserva e, ao proceder assim, colocam-se os agentes públicos no campo da ilegalidade e abuso/desvio de poder.

Resta concluir que, enquanto a lei estabelecer essa reserva, os brasileiros que se autodeclaram pardos não devem ser discriminados, mesmo que a cor da pele seja clara, sob pena de incentivar movimentos sociais que não representam o sentimento do povo brasileiro. Será que a universidade brasileira esqueceu as lições de Darcy Ribeiro? Estudos genéticos revelam que pardos possuem ancestralidades européias, indígenas e africanas, variando as proporções de acordo com o indivíduo e a região.

Cabe aos agentes públicos das universidades ensinar os educandos a conviver e respeitar as diversidades, sejam étnicas ou de gênero, sob pena de se permitirem o ódio entre seres humanos ao ponto de dar ouvidos a denúncias baseadas em fotografias de rostos de pessoas com pele clara. 

O desligamento dos alunos da UFPel gera sentimento de revolta entre as pessoas de bom senso que reconhecem o desvirtuamento do espírito do Programa de Ações Afirmativas .

O princípio do in dubio pro alumnus há de ser respeitado no MPF e no Poder Judiciário para evitar que se consumem injustiças com o desligamento dos estudantes pardos, lembrando lições do saudoso professor e sociólogo Darcy Ribeiro sobre a identidade étnico-nacional, a de brasileiros:
Nós, brasileiros, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos viveu por séculos sem consciência de si... Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros...”
– A lei Lei nº 12.990/2014:
Art. 2o Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
– Resolução n. 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça.
Art. 5º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos, no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).



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