28 janeiro, 2002

Concurso Público e o desvio de finalidade

Wanda Marisa Gomes Siqueira*

O Direito Constitucional emergiu do regime liberal francês, quando a Revolução Francesa de 1789 proclamou na célebre Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão o conceito clássico de Constituição. Nasceu então, o princípio de igualdade jurídica, instrumento esse que vai de encontro aos privilégios pessoais e à hierarquia das classes sociais, fonte inesgotável da defesa do ideal da egalitè predominante em todas as constituições modernas.
Na busca desse ideal de igualdade surge a obrigatoriedade do concurso público para o ingresso em cargo ou emprego público. Em nosso país, desde a Constituição de 1967, os concursos públicos só podem ser de "provas e títulos", ficando assim afastada a possibilidade de seleção com base unicamente em títulos. Merece mencionar que o legislador brasileiro até a
presente data não definiu na Constituição ou em lei ordinária forma ou procedimento que dê segurança aos concursados em relação à lisura e transparência dos processos seletivos. Em conseqüência da intencional omissão do legislador, existem muitas irregularidades e discriminações nos concursos públicos e, via de conseqüência, muitas injustiças são consumadas e muitos privilégios são mantidos.
O administrador público, no uso de seu poder discricionário, pode, querendo, elaborar editais com aparência de legalidade (com ampla divulgação, com bancas ou comissões organizadoras compostas por elementos capazes e idôneos, com normas para a realização das provas...) para dar a impressão de que preocupou-se com a lisura e transparência do processo seletivo e, nas entrelinhas, estabelecer normas que atentem contra o princípio da igualdade (limite de idade, altura, peso, sexo, estado civil...) e o mais grave, ainda, pode estabelecer critérios de avaliação eivados de subjetividade nas provas orais, nos exames psicotécnicos, nos
testes de aptidão vocacional, nas entrevistas, na avaliação dos títulos (para proteger os afilhados da administração).
A indagação que se impõe é sobre o sentido dessa prática: o que o administrador público pretende com ela? Quando isso ocorre, um universo muito pequeno de candidatos preteridos recorre ao Poder Judiciário para pleitear a nulidade de questões do concurso e, em casos graves, a nulidade de todo o processo seletivo.
Na prática observa-se que candidatos considerados inaptos em exames psicotécnicos, em testes vocacionais, em exames odontológicos, em provas de aptidão física e na avaliação de títulos têm conseguido comprovar judicialmente o desacerto e a falta de probidade da administração. Sem dúvida alguma, terá havido aí desvio de finalidade, o que os franceses
denominam détournement de pouvoir e os italianos chamam esviamento di potere. Nesse caso, não importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja aparentemente lícita e justa, o ato será inválido, porque houve abuso de discrição com o propósito de favoritismo.
O tema exige atenção dos profissionais da carreira jurídica e se impõe revelar que, embora tivéssemos conseguido muitas conquistas no texto da nova Carta – eminentemente sociais e igualitárias, o momento atual demonstra que essas conquistas estão sendo gradativamente suprimidas pelo executivo, com o apoio de parlamentares.
Paradoxalmente, a chamada reforma administrativa implementada a nível estadual e federal também tem aparência de legalidade, mas quando examinada criteriosamente evidencia desvio de finalidade, a exemplo do que ocorre na maioria dos concursos públicos.
Vê-se, portanto, que essa prática está generalizada. O que se pode esperar dos agentes públicos quando o chefe do executivo viola a Constituição Federal ao argumento de que seus atos são moralizadores e justos?
Os cidadãos precisam saber que nos concursos públicos ainda existem privilégios e que nem sempre são selecionados os mais capazes. Devem saber que algumas provas exigidas nos concursos públicos se prestam para facilitar a aprovação de alguns privilegiados.
A partir de sua independência, desde 1822, o Brasil promulgou sete constituições. De todas elas a mais avançada é a atual, em relação à administração pública, todavia, por paradoxal que possa parecer, está sendo frontalmente violada pelo chefe do executivo e pelos agentes
públicos responsáveis pelos editais dos concursos, em especial, nas universidades públicas.
Razões as temos, portanto, para lembrar ao cidadão que o artigo 5º XXXV da Constituição Federal ainda não foi revogado e assegura o acesso ao Poder Judiciário sempre que houver lesão ou ameaça de direito. Por último, cabe lembrar que a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, em seus artigos 11, V e 12, I, II, III prevê sanções penais, civis e administrativas para
quaisquer agentes públicos que agirem com falta de probidade, frustrando a licitude dos concursos.
Assim sendo, a cidadania precisa saber, também, que as prerrogativas dos juízes devem ser mantidas para que eles possam, de forma independente, se provocados pelo cidadão, revisar e anular atos praticados com desvio de finalidade, possibilitando que os ideais de igualdade, pelos quais nossos antepassados tanto lutaram sejam mantidos.

*Advogada
Publicado no Diário da Manhã dia 12/04/99 e no Jornal do Comércio dia
28/01/2002

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